virgínia e carolina | 2024 #05
ter ou não ter um teto? eis a solitária questão da mulher que escreve.
um tema recorrente da minha obra é a solidão. se você nunca leu nada meu sobre o tema, faço um resumo: às vezes eu amo, às vezes eu odeio estar só.
no momento, graças a uma equipe multidisciplinar (psicóloga, psiquiatra, professores das aulas que me fazem bem, alunos que pagam a minha sobrevivência, amigues, pai de santo, exus, pombogiras, pretos velhos, caboclos e outras entidades e minha mãe, a maior entidade na minha vida neste momento) estou de bem com a solidão.
tudo é processo então demorei não só a ficar bem de novo com a solidão mas também demorei a perceber que estava bem. demorar talvez não seja a palavra, porque foi no tempo certo. mas o importante é saber que não foi de um dia para o outro.
no exato dia em que me dei conta de que estava feliz e sem NECESSITAR ENCARECIDAMENTE de companhias - sinal de que tenho sido cuidada e abastecida para que a ausência não seja necessariamente falta e seja tolerada até que a presença seja possível - recebi uma zine.
a solidão como arma política é uma tradução do texto original soledad & desolación, de marcela lagarde. o livreto em xerox é da heretica edições, do coletivo deformação.
a autora advoga pela solidão feminina enquanto maneira de construir autonomia. não é que se deve buscar isolamento total, mas momentos de independência que destoam do que nos fazem crer sobre a mulher: a frágil e incapaz criatura dependente de todas as pessoas ao redor; aquela que teme a solidão, em especial a romântica.
além de me contemplar no momento de independência e autonomia que estou vivendo, o texto me lembra a necessidade de solidão para que cada pessoa construa seu próprio individuamento por meio da reflexão e assimilação que só acontecem quando não se está na companhia de outras pessoas.
dou aulas de yoga e convivo majoritariamente com mulheres em todas as áreas da minha vida. as jovens sem relacionamentos românticos formais amam seus momentos de cuidarem apenas de si e lutam por eles como se fosse o maior dos tesouros. de fato, uma hora com o celular desligado é uma solidão maravilhosa, certamente um respiro e quem se entrega a essa oxigenação reconhece o valor dela. um hobby pode ser a coisa mais importante desejada e esperada na vida de alguém, e eu estou nessa categoria.
já uma queixa das que são casadas e mães - mesmo de filhos crescidos - é que sentem falta de um tempo exclusivamente seu - e encontram no yoga, que é uma prática ainda assim compartilhada - um momento onde a vida cotidiana não as toca. ali elas podem ser apenas elas mesmas: mulheres mexendo seus corpos, ouvindo seus pensamentos, descansando, respirando sem presa nem paciência.
como falo sobre escrita nesta newsletter, para escrever sobre a solidão ou a solitude vou invocar o texto já clássico sobre a necessidade de tempo e espaço próprios para que uma mulher produza, da virginia woolf.
um teto todo seu é um ensaio da autora britânica publicado em 1929. em uma época em que mulheres eram confinadas ao espaço doméstico, ao trabalho de cuidado com a casa e os filhos e ao casamento. virginia sugeria que mulheres precisavam dispor de um teto todo seu - uma casa ou espaço próprio onde nenhum daqueles fatores interrompesse sua pausa para escrever.
bem, que mulheres eram essas? woolf era uma mulher branca, cis de classe média. nunca precisou ganhar a vida como suas conterrâneas mais pobres nas fábricas inglesas e seu confinamento máximo era ao tédio doméstico - que sabemos ser sim maçante, e cuja repetição e desvalorização retiram a dignidade de uma contribuição indispensável à sociedade que os cuidados que a mulher enquanto grupo social tem com a família o lar e seus maridos oferecem. virginia era uma mulher queer - e uso aqui o termo guarda-chuva como forma de também declarar que ela ter trocado cartas de amor com a mulher por quem era apaixonada a torna desviante da sexualidade padrão esperada, apesar de ela também ter se embrenhado em um casamento com um homem.
talvez ser queer seja o maior peso sobre sua caminhada rumo a escrita - não diminuindo o arrastar de outras questões pesadas, como a própria fragilidade mental que a trouxe ao suicídio ou as próprias contenções das expectativas de um casamento burguês. woolf conseguiu escrever. conseguiu ter um teto pra chamar de seu.
mas e quem não tem um teto todo seu? como consegue escrever?
carolina maria de jesus era o que hoje chamamos de mãe solo e também uma mulher negra na sociedade brasileira recém saída da escravidão - os fragmentos que se transformaram em seu livro mais conhecido foram escritos cerca de 67 anos após a assinatura da lei áurea. sem assistência mínima de um estado - conhecido por se preocupar, na época, com o desenvolvimento da indústria e a criação de uma capital federal no centro do país, mas pouco ocupado com o amparo e o desenvolvimento real de seus cidadãos - carolina vivia em um barraco na favela do canindé com os três filhos que sustentava catando papel e material reciclável pelas ruas. os cadernos onde rabiscava seus sonhos e angústias e nos quais desenhava com palavras seus vestidos com tecido de céu estrelado eram feitos com papéis que encontrava em meio a seu trabalho.
a autora conhecida principalmente por quarto de despejo não tinha um teto todo dela enquanto escrevia seu diário de uma favelada. e ela escreveu esta e outras 21 obras com muito mais sobrecarga que as mulheres de classe média inglesa que precisavam de um teto todo seu. carolina chegou a ser reconhecida internacionalmente por sua literatura, mas ainda era uma mulher preta em um mundo, país e cidade infiltrados de racismo por todos os lados. ainda era mãe. ainda foi moradora da favela do canindé por um longo tempo.
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não quero romantizar o empenho literário de uma mulher que deveria ter uma vida minimamente digna desde sempre, e também não quero desromantizar completamente sua vida - todas as pessoas têm direito a realizar seus desejos e encontrar a felicidade em meio ao caos de um cotidiano cruel.
também não quero minimizar o sofrimento de uma mulher que queria se livrar de opressões invisíveis mas tão sufocantes quanto quaisquer outras. isto não é uma competição de sofrimento ou dignidade. vamos considerar que ambas, e todas as outras mulheres que existiram antes, depois e junto a carolina e virginia, foram presas por tentáculos sociais diferentes, mas que apertavam com a mesma força todas as suas vítimas.
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a solidão de carolina maria de jesus estava no desamparo e talvez também no tempo que passava perambulando em busca de papel para vender em quantidades enormes por alguns centavos. ela tinha tempo só, mesmo com tantas obrigações.
ao mesmo tempo, virgínia conseguiu encontrar um teto todo seu para escrever.
entre tentáculos sociais, raciais e de gênero, elas puderam respirar em um tempo e local só delas. e se tornaram autoras de destaque. a solidão foi a arma que usaram para se tornarem quem queriam ser: autoras de si mesmas.
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mas porque comparo a vida dessas duas autoras e ainda trago o relato das mulheres com quem convivo que lutam para terem suas horas de prática de yoga preservadas, já que é um dos poucos momentos que têm para si?
uma escrita expressiva é uma necessidade, como se cuidar através da prática de yoga - e quem escreve para se expressar sabe disso. e é uma necessidade considerada desimportante, porque não é de primeira ordem. para nós, colocadas nessa categoria chamada mulher, as necessidades mais básicas deveriam ser: um, cuidar de nós para sobreviver e estar dentro dos padrões esperados para agradar aos homens; dois, cuidar deles, das crianças e dos idosos, das casas. e ainda temos o cargo de trabalho formal se juntando a estas funções.
parece que não deveria nos caber fazer nada por nós mesmas. a vida da mulher, aparentemente, deve ser fadada à solidão de cuidar de tudo e de todos e não ser cuidada por ninguém.
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se a escrita é uma necessidade, um cuidado mental, buscar por um teto e um tempo todo seu é indispensável. se para virginia woolf pareceu fácil, para carolina maria de jesus não foi tão simples. mas veja bem: elas conseguiram. entre frestas a gente consegue escrever. a independência e a busca por essa solidão para escrever - nem sempre física, como o futebol de toda quarta de muitos homens também não é literalmente solitário - ainda que seja um dos mais clássicos modos de ser apenas ele que os homens tanto têm. que encontremos a solidão da autonomia para escrever, se esta for a nossa vontade.
a solidão para a escrita, paradoxalmente, tem também um efeito coletivo:
ter ou não ter de um teto não é a questão. a questão é que a mulher que escreve nunca está só. quem escreve será lida por outras. sua solidão serve apenas para organizar pensamentos e produzir a escrita, pois mesmo quando escreve para si, inspira outras. transcende o tempo, se torna a virgínia e a carolina do amanhã.
em maio, o coletivo margem junto aos coletivos escreviventes, escribas e poexistência organizou duas ações interligadas para promover a literatura independente. no dia da literatura nacional, 01/05, o projeto #LerÉColetivo deixou gratuitos ou em promoção 97 obras de autoria de integrantes dos coletivos e ao longo do mês, a #MaratonaLerÉColetivo incentivou com prêmios a escrita de resenha dos livros do projeto. foram 95 resenhas espalhadas pelas redes, duas vencedoras e mais alguns sorteios que ainda vão acontecer. saiba mais sobre a primeira edição do movimento neste e em outros posts com as hashtags do projeto!
a revista desvario publicou meu poema influências e fiquei muito feliz em ter esta poesia de ANIMA MUNDI nesta revista que tanto admiro. ANIMA MUNDI pode ser adquirido no site da editora arpillera. mas vou fazer um pedido de alguns livros para enviar com autógrafo. se você deseja receber uma cópia com assinatura, me mande uma mensagem clicando no botão abaixo.
nos lemos no mês que vem!
Inspirador Anna! Deu mais vontade de achar "um tempo todo meu" para escrever, apesar do caos cotidiano e toda sobrecarga feminina.