não precisamos de mais heróis | 2024#02
joseph campbell observa na construção de mitos, fábulas, lendas e narrativas a recorrência uma sequência de transformações que tornam um personagem herói. mas o herói de mil faces precisa morrer.
não precisamos de mais heróis | 2024#02
em 1949, o escritor e professor de literatura joseph campbell publicou o herói de mil faces, uma obra de mitologia comparada na qual se discute a teoria da jornada do herói arquetípico. a análise de diversas histórias, mitos, fábulas e lendas ao redor do mundo leva o mitologista estadunidense à conclusão de que, em tais narrativas, um personagem passa por uma sequência específica de transformações até se tornar um herói. a sequência de doze etapas se aplica a histórias e estórias que vão da trajetória de jesus cristo até a de heróis gregos da mitologia antiga.
o herói tem mesmo mil faces?
até hoje, quando se cria a história de um herói, a base para a narrativa acaba sendo aquela que joseph campbell decodificou como sendo ‘a jornada do herói’. se você leu mitologia grega ou a bíblia, já teve contato com a fórmula do chamado ‘monomito’. se leu histórias em quadrinhos de heróis na sua infância, acompanhou a jornada de herói na sua mais comum repetição literária. e se você por um acaso esteve vivo nos últimos quinze anos, provavelmente assistiu a alguma das QUARENTA E NOVE produções audiovisuais da marvel que, entre filmes e séries, lotou cinemas com a mesma história baseada na jornada do herói sendo contada outra e outra e outra vez.
pode observar: existem pouquíssimas diferenças entre essas tramas. todas elas passam, de uma forma ou de outra, pelos doze passos da jornada do herói: o mundo comum; o chamado à aventura; recusa do chamado; encontro com o mentor; a travessia do primeiro limiar; provas, aliados e inimigos; aproximação da caverna secreta; a provação; a recompensa; o caminho de volta; a ressurreição; e o retorno com o elixir.
você não precisa gostar de literais heróis com super poderes para ter tido contato com a jornada clássica, muito aplicada ao gênero da aventura e do drama, tanto na literatura quanto no cinema: o rei leão, forrest gump, rocky balboa, o senhor dos anéis, harry potter, matrix e guerra nas estrelas seguem a mesma fórmula de desenvolvimento do personagem principal. algumas tramas são mais bem sucedidas em adaptar os fatos a novos detalhes, algumas cativam por assumir e usar o clássico sem medo de reverenciá-lo, outras tentam quebrar parcialmente com a ideia e acabam tornando a história ruim, outras fazem a quebra parcial da fórmula e conseguem criar uma narrativa com ares de frescor.
dizem que as personagens seguem a fórmula da ‘jornada da heroína’, decodificada por maureen murdock, mas me parece uma reformulação adaptada dos mesmos passos, e alguns levantam até mesmo a existência da ‘jornada do anti-herói’. o que podemos observar é que muitas das histórias que formam o imaginário popular sobre valores desejados e indesejados, sobre o bem e o mal, sobre o que se aceita ou não em uma sociedade passam basicamente pela mesma fórmula. o herói tem mesmo mil faces ou apenas mil máscaras para esconder o mesmo rosto?
o herói tem que morrer
não me entendam mal, eu gosto de uma boa jornada do herói e, nunca parei pra contar, mas, das quarenta e nove produções existentes até 2023 no universo compartilhado da marvel, eu assisti a aproximadamente uma caralhada de filmes. sem contar os outros tantos heróis com os quais a cultura dos eua e europa colonizaram nossa mente ao longo dos anos de influência cultural impulsionada para angariar soft power. e de alguns eu nem reclamo, gosto genuinamente: um dos programas favoritos das mulheres da minha família é assistir à franquia rocky e sua derivada, creed.
o problema é que enquanto essas histórias inspiram, entretêm e até nos proporcionam catarses potentes, elas não se aprofundam para dizer algo sobre humanidade. muita gente gosta das características humanas dos protagonistas - o amor que a mulher maravilha sente por um homem comum, o fato de que o homem aranha precisa ter dois empregos pra pagar a contas, a irritação de jesus cristo com os vendilhões do templo. mas a maior parte das narrativas se ocupa em contar sobre essa sequência de fatos que vão levar a personagem a atingir e dominar seus plenos poderes. pouco sabemos sobre quem, de fato, são esses personagens - já que conhecemos apenas quem são e se tornam diante deste chamado da aventura.
a cultura massiva estadunidense tem empurrado sobre nós um sem fim de personagens superficiais, feitos para gerar identificação em tanta gente que acabam não tendo particularidades marcantes.
certo, esse mergulho na psiquê do protagonista não faz parte do gênero aventura. o problema, no entanto, é que a fórmula do monomito parece ser uma unanimidade nos cursos de escrita literária e de roteiros, e a sequência de fatos e desdobramentos que levam a personagem a descobrir seu máximo potencial parece ter contaminado outros gêneros a ponto de tornar muitas histórias da indústria dos eua nada mais do que uma sucessão de acontecimentos que recaem sobre um personagem.
as fórmulas de escrita são limitadas e pouco humanas. a solução para personagens mais humanos é a morte dos heróis.
outros heróis
mesmo que o livro de joseph campbell - ainda hoje um norte na escrita de diversos personagens - se debruce sobre muitas culturas, o arquétipo do herói que encontramos no monomito é obviamente ligado à cultura ocidental europeia. quantos itãs foram estudados? quantos mitos do oriente médio e do leste asiático inspiraram a teoria? quantas narrativas dos povos ameríndios foram incluídos no estudo? duvido que muitas.
uma narrativa - qualquer que seja - não conta só uma sucessão de fatos. uma história se faz de valores, expectativas e formas de agir de um povo e transmite o inconsciente coletivo de toda uma nação. e todos esses detalhes, às vezes se escondem não no que acontece aos personagens, mas no jeito como a trama se constrói. o modo como se conta uma história é também, por si só, uma outra linguagem. e a estruturas de uma linguagem conta, por si só, uma outra história que vai além do que está sendo dito.
“para aquelas entre nós que escrevem, é necessário esmiuçar não apenas a verdade do que dizemos, mas a verdade da própria linguagem que usamos”
audre lorde em ‘irmã outsider, ensaios e conferências’ (tradução de stephanie borges)
a jornada do herói e suas derivações incorporadas na forma de narrar ocidental, no geral, nos conta sobre pressa, sobre fatos massacrantes que nos atropelam um atrás do outro, sobre pessoas que nos encontram no caminho e que nos servem para algo, sobre as dificuldades enquanto forma de aprender, sobre o sofrimento enquanto revelador de nossos poderes ocultos, sobre a vida ser uma batalha, sobre um maniqueísmo que esconde a possível e provável complementaridade do que nos opõe.
passamos a enxergar o mundo dessa mesma forma, porque os heróis das narrativas gregas - de quem herdamos muito da nossa forma de contar histórias - carregavam os valores desejados para um indivíduo daquela sociedade. queremos ser como nossos protagonistas ao mesmo tempo que já vemos um pouco de nós neles, aquele pouco que nos motiva. a jornada nos leva a crer que se a gente se esforçar, a gente consegue vencer (vencer o que? a vida é sempre uma guerra?). porque, como pregam essas narrativas, há sempre um outro a se combater - e quem é que colocamos no papel de outro? o monomito nos ensina que depois do sofrimento há uma recompensa. essa compulsão pela transformação, ainda que pela dor, não significa que o herói - e, como o espelhamos, nós também - é insuficiente?
as pessoas podem se transformar, mas elas já são suficientes. e os nossos heróis não precisam sempre passar por sofrimentos e provações para se tornarem melhores. será que tudo que nos acontece e todas as pessoas que nos cercam servem para nos ensinar algo?
nem todo movimento gera atrito
houve uma situação em que mandei uma leva de contos meus para leitura crítica. um comentário recorrente foi de que existiam poucos conflitos. não creio que isso foi dito com a intenção de criticar, apontar algo negativo. foi mais uma observação sobre a minha forma de escrever. na época, questionei se deveria mudar minhas tramas, mas só depois de algumas tentativas de escrever grandes sequências de acontecimentos e reviravoltas apenas para que constassem no texto me dei conta de que eu não preciso sempre seguir fórmulas. a escrita é livre, eu apenas tenho que aceitar que as consequências virão - e provavelmente, elas serão apenas outros comentários que não compreendem a minha experimentação textual.
concluí que eu não precisava colocar mais conflitos na história, mais fatos, mais ações, porque o que eu escrevo tem muito pouco de jornada de herói e é um mergulho dentro da mente e sobretudo das emoções dos personagens. muitas vezes, o que eu quero trazer ao mundo não é uma jornada complexa de fatos, mas a complexidade que existe no interior de um personagem.
uma história com poucos conflitos e fatos pode revelar o avesso dos personagens; pode gerar uma identificação realmente profunda ou um entendimento mais certeiro do protagonista que criamos e até mesmo as escolhas do nosso herói podem sair do convencional porque iremos compreendê-lo por quem ele é e não pelo que é esperado se ele seguir uma fórmula.
uma história precisa de movimento - que pode até ser só uma movimentação mental -, não necessariamente de atrito e conflito. nosso mundo nem sempre é luta, então por que nossa criação sempre precisa ser sobre combates e embates?
o que você acha dessa proposta de ver e escrever o mundo? me conta nos comentários!
ANIMA MUNDI ESTÁ ENTRE NÓS!
Anima Mundi é um termo em latim que significa “a alma do mundo”. O conceito cosmológico com origens na filosofia de Platão e que vem, ao longo do tempo, sendo incluído em diversas outras formas de pensamento resume aquilo que se alcança com a leitura deste livro. A alma do mundo é algo que talvez ninguém possa explicar mas um espírito palpável que todos conhecemos. Na estrada percorrida com a leitura desse livro, essa alma vai sendo exposta, poema a poema para que se possa experimentá-la, senti-la e, quem sabe entendê-la – ainda que a compreensão racional nem sempre se faça necessária.
Eu estou muito satisfeita com a pré-venda, e quero que este livrinho escrito com muito amor e algumas doses de revolta e costurado a mão artesanalmente ganhe o mundo. O projeto gráfico de ANIMA MUNDI foi pensado com atenção aos detalhes e está tão maravilhoso quanto o conteúdo dos poemas! Meu novo livro veio ao mundo e e pode ser adquirido por R$49,90 + frete no site da editora Arpillera.
No mais, o Shake de Cultura retorna em breve com um especial do Oscar 2024! Nos vemos em março!
Eu precisava ler isso e não sabia... kkkk! É sempre bom sermos lembrados de que há outras possibilidades de ser e desengessar a escrita reflete isso. Prefiro olhar a vida pelo viés da colaboração em vez da competição e sabemos que bem e mal.... Bem, nada é tão simples assim!... Ótimo texto!!!