edição extra: NINGUÉM ESCREVE UMA HISTÓRIA SOZINHA
Quando a Julia Peccini me convidou para escrever algo sobre coletivos de escrita, uma série de pensamentos sobre a experiência se revirou na minha mente.
Antes de tudo, caso você não conheça Julia Peccini, apresento o trabalho desta integrante do Coletivo Escreviventes e do Coletivo Margem na newsletter dela: Frestas tem reflexões que costuram a trama da escrita à da vida em bordados artísticos feitos com linhas de linguagem poética.
Foi na edição número 09 de Frestas que iniciamos essa conversa textual sobre a escrita em coletivos, e recomendo a leitura de “O que não te falam sobre o aumento da leitura no Brasil: A escrita literária em grupo.” antes de prosseguir comigo.
Quando a Julia Peccini me convidou para escrever algo sobre coletivos de escrita, uma série de pensamentos sobre a experiência se revirou na minha mente.
No movimento da água parada da memória, veio à tona uma das minhas primeiras experiências de escrita coletiva. Na pré-adolescência, os fóruns para fãs de Harry Potter reuniam escritores de fanfics que, nestes espaços de interesse comum, debatiam e construíam novos entendimentos sobre a prática da escrita. Na mesma época, com alguns amigos da vida real que também frequentavam esses espaços virtuais, fazíamos circular entre nós um caderno que, entre uma aula e outra, ia ganhando a colaboração conjunta de pré-adolescentes escrevendo uma fanfic paródia do universo dos livros escritos por J.K. Rowling, onde nos inseríamos nos cenários da série e convivíamos entre os personagens.
A outra memória que emergiu é mais recente: eu estava disposta a desenvolver e me dedicar mais à minha escrita depois de ter me formado em letras e ter trabalhado por oito anos como professora de inglês. No intuito de encontrar um caminho para tornar a escrita uma profissão e não só uma diversão, acabei procurando a mentoria de Fernanda Rodrigues. Um dos primeiros conselhos, ainda no nosso primeiro encontro, que era informal e não uma aula propriamente dita, foi: encontre sua turma de escritores.
Compartilhar experiências de escrita e o próprio processo de autoria tem sido algo que me formou enquanto escritora e me deixou mais amparada. A professora de escrita tinha razão: ter amizades que também escrevem é compartilhar as dores e as delícias do ofício, algo que, habitante de uma cidade do interior de Minas, seria difícil de conseguir sem a internet como meio.
Hoje eu tenho rede de apoio no Coletivo Margem, com muitas pessoas geograficamente próximas a mim, mas ainda assim, nosso contato costuma ser virtual. E quando é que a escrita coletiva não aconteceu - para mim - em um espaço virtual? Nas páginas de fóruns da web ou nas folhas pautadas de um caderno, o coletivo nunca foi muito palpável, e depende de um acordo implícito entre quem participa para que as forças sejam unidas em uma entidade única - o fórum, o caderno, os grupos.
Mas que forças são essas que se tornam uma só?
Escreviver
Experimentando seguir o conselho de Fernanda Rodrigues, percebi a existência de coletivos, algo facilitado pela internet e única possibilidade real em tempos de isolamento em função da pandemia. Coletivos pareciam ser mais complexos e por isso, fortes - como tecidos de muitas linhas são tramas mais resistentes - do que ter amizades isoladas no meio da escrita. O Coletivo Escreviventes foi meu primeiro contato com a experiência de desenvolvimento da escrita coletivamente e definida como tal - os cadernos e fóruns não se sabiam coletivos. Nele, realmente encontrei outras escreviventes que apoiam o trabalho umas das outras, se propõem também a doar seu trabalho e olhares atentos para fazer a escrita da outra mais segura e autônoma.
Criado por Conceição Evaristo, o termo "escrevivência" traz a junção das palavras "escrever e vivência", mas a força de sua ideia não está somente nessa aglutinação; ela está na genealogia da ideia, como e onde ela nasce e a que experiências étnica e de gênero ela está ligada, explicou a escritora e educadora. "A escrevivência não é a escrita de si, porque esta se esgota no próprio sujeito. Ela carrega a vivência da coletividade."
fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/a-escrevivencia-carrega-a-escrita-da-coletividade-afirma-conceicao-evaristo
Compartilhamos sonhos e frustrações, raivas e alegrias. Quem sabe como é escrever tem outra percepção da escrita alheia: conseguimos ver as sutilezas, delicadezas e nos propomos a conviver com o texto com mais gentilezas. Mas também escrevivemos, naquele espaço virtual em que nos conectamos, sobre nossas vivências e realidades coletivas. Construímos para além da escrita ou da leitura, escrevemos sobre a própria vida e ganhamos mais força para seguir nossos caminhos.
Parece ser algo assim que também sentem as mulheres que responderam ao formulário sobre a participação nestes coletivos. Os depoimentos abaixo são colheita da pesquisa que realizamos nos coletivos Escreviventes e Margem.
“São grupos excelentes e que estimulam trocas e incentivam que escrevamos mais e mais.”
“São fundamentais para a troca de ideias e informações, para o fortalecimento de uma literatura independente, para a divulgação do trabalho literário e prestações de serviços relacionados ao livro, para a disciplina de escrever textos e ser lido, para o fomento da leitura e rodas de conversas sobre literatura, para impulsionar a escrita de quem está começando nesse universo.”
“É uma base de apoio importante. A troca de experiências, expectativas e conhecimento agregado, além das discussões sobre o mercado literário em si e a multiplicidade de ações, opiniões e "visões", é sempre relevante.”
“Os grupos ajudam muito a sairmos da nossa própria bolha e a criarmos identificação com outras pessoas que estão em jornadas parecidas com as nossas. Escrever junto também é um grande aprendizado. Infelizmente, quanto maiores os grupos, mais difícil de acompanhar todas as discussões e leituras.”
Escrever pelas beiradas
Além de tudo que essa rede de apoio para a escrita pode oferecer e que parece ser benefício para mim e todas as que compartilham das escrevivências de um coletivo, há um papel importante que vai além do próprio oficio de escrita. No texto que vocês já leram na newsletter Frestas, a Julia falou um pouco sobre a popularização da leitura através dos coletivos de escrita, mas eles também tem o poder de atuar para popularizar o acesso aos meios de se contar a própria história - algo que se conecta também ao conceito de escrevivência.
Tecnicamente, qualquer pessoa que tenha papel e caneta é capaz de registrar a sua vivência em palavras - Carolina Maria de Jesus é um exemplo extremo e triste de que, mesmo não tendo um teto todo seu, que Virginia Woolf julgava essencial para a escrita, ainda se pode se inscrever no mundo e (re)escrevê-lo tendo pouco. A força coletiva, no entanto, também permite que o voo dessas palavras mundo afora não dependa do acaso, como a carreira literária de Carolina Maria de Jesus dependeu. O compartilhamento das ferramentas e conhecimentos para uso da máquina de publicação chega mais longe.
“Saímos desse lugar elitizado em que a escrita sempre esteve e damos voz a quem achava que não podia existir no âmbito da literatura”
“Os coletivos impulsionam também o trabalho individual, embora o retorno financeiro ainda seja baixo para a maioria dos escritores brasileiros independentes ou em editoras de menor porte, estar em grupo aumenta as chances de atingir mais leitores. É um processo longo e árduo, mas sozinha é mais difícil.”
Historicamente, o comando das editoras sempre esteve e ainda está nas mãos de um grupo privilegiado específico. Portanto, obviamente, as narrativas que interessam a eles que se perpetuem na literatura são precisamente aquelas que observam o mundo pelo mesmo ponto de vista que eles - e são estas que vêm circulando massivamente na nossa cultura por muitos e muitos anos.
Mulheres, pessoas racializadas, LGBTs+, neurodivergentes e PCDs seguem sistematicamente excluídos de terem suas histórias contadas, então ainda é preciso abrir caminho para que sejam publicados e lidos. E as propostas de muitos coletivos se voltam para estes grupos. O Escreviventes se volta para mulheres, e, em um projeto ambicioso, o coletivo Margem surgiu com a intenção de facilitar o acesso aos amplificadores e aumentar o volume da voz literária de todos estes grupos.
Quando o criei, tinha medo de que nem sequer vingasse, mas está brotando a raiz de algum fruto bonito - e espero que nutritivo e saboroso também. O mais importante é seguir cultivando coletivamente o solo. Talvez não colhamos o fruto, e ele pode alimentar somente as próximas gerações, assim como nós também nos alimentamos do cultivo de quem veio antes: Carolinas, Conceições, Marias Firminas, e tantas outras que deixaram sementes.
Sigamos escrevendo pelas beiradas, no plural. Também há caminho e frutos do mato nas margens do mercado editorial.
“O papel dos Coletivos nesse cenário é o de "correr por fora", penso eu, pois contamos mais com o número de pessoas do que com o de cifras, e quando as pessoas se apoiam, chegam mais longe, mesmo que demore mais.”
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Depois dessa edição extra com Julia Peccini, o ANNAVERSO volta no fim do mês, para a próxima edição regular. Espero que tenham gostado! Envie para amigues e receba mimos por assinaturas feitas através do seu link. Saiba mais sobre as recompensas para assinantes-colaboradores aqui, e use o link abaixo para espalhar a palavra por aí!
Aproveito a oportunidade a mais de conversar com vocês para lembrar que Emprestado, meu novo conto, já está disponível na Amazon por R$6,99 e gratuito no K.U. É uma novela fofa sobre autodescobertas da (pré) adolescência e muitos, muitos beijos. Não se esqueça de deixar avaliações depois de ler!
Cada vez mais acredito no coletivo para fortalecer em nós a escrita e venho aprendendo muito no coletivo.margem.
Sei o quanto é difícil quebrar a bolha de quem detem o poder de publicar histórias.
Entretanto, através dos coletivos podemos nos ajudar e formar uma coletividade de escritores que escrevem pelas beiradas.