#10 - PAPEL MOEDA, parte 1
Reflexões sobre a escrita em um mundo capitalista: uma leitura essencial para quem lê por hobby e acolhedora para quem escreve por profissão.
A edição de novembro fala sobre o ofício da escrita de uma perspectiva que muita gente que consome a literatura nem imagina. Ele apresenta uma visão importante para criar leitories mais conscientes e acho que vai ser legal que ele chegue a mais gente.
INVESTIMENTO ALTO, BAIXO RETORNO
Sabe quanto eu gastei pra publicar meu último livro na Amazon? OITOCENTOS E CINQUENTA REAIS. Este valor foi empenhado apenas em remunerar os trabalhadores da cadeia editorial que, como escritora independente, eu preciso pagar para fazer uma publicação razoável. Contratei leitora crítica, preparadora de texto e revisora, diagramadora e capista, ilustradora, paguei tudo do meu bolso. Subi pra plataforma KDP gratuitamente, trabalhei pra criar uma divulgação bacana sozinha - algo que também poderia ser pago - e estas foram os dois únicos serviços não pagos da publicação independente em formato de ebook.
Este não é um texto pra reclamar do valor do serviço dos profissionais editoriais. Pelo contrário, acho justos os preços, e evito negociações sempre que a conta bancária permite. Escrevo estas notas, na verdade, para você - que não escreve - entender que quem segue escrevendo está na carreira literária por amor mesmo, porque por dinheiro não é.
Mas a questão é que, mesmo que eu faça isso não exatamente pra ganhar dinheiro, eu também preciso e mereço ser paga. No momento, não é nem pra lucrar, é só pra cobrir os gastos de publicar. Ainda está no futuro a esperança de que este e outros livros meus paguem pelas horas de trabalho em que me debrucei sobre o texto e - se Saraswati permitir - algum dia espero lucrar com a literatura a ponto de trazer mais conforto para minha vida. E eu também gostaria de receber a compensação pelas horas e criatividade gastos para pensar uma divulgação independente feita para as redes sociais.
AMBIENTAÇÃO
Eu preciso começar fazendo com que você saiba que falo sobre a minha experiência com a escrita, mas este cenário é o mesmo onde tantos outros escritores, escritoras e escritories independentes circulam com suas banquinhas de livros virtuais e físicos feitos com muito amor - porque só o amor justifica passar pelo que passamos por vontade própria.
Há quem viva da literatura - muitos escritores oferecem serviços editorias também, dão cursos, aulas e oficinas, têm perfis em plataformas de apoio recorrente, mas lucro das publicações ainda não deixa ninguém com conforto financeiro. E, devo acrescentar, que nem Drummond nem Clarice viviam da escrita, entendem? Deve ser possível contar nos dedos quem hoje vive exclusivamente da venda de seus livros.
Na publicação tradicional, o valor de capa - aquele que você, leitore, paga pra adquirir o livro físico - costuma ser dividido assim: 90, 80 ou 70% para a editora, 30, 20 ou 10% para a autoria. Se um livro custa 40 reais, 4, 8 ou - com sorte e para quem já tem algum histórico maior de vendas - 12 reais vão para a conta do escritor. Mas, muitas vezes o acerto é trimestral ou semestral. E… bem, quantos livros você acha que a maioria de autories costuma vender? No ranking do publishnews (LINK), o livro mais vendido de outubro foi “Onde estão as flores” de Ilko Minev com 6364 cópias vendidas em uma lista limitadas de livrarias que o portal monitora. Mas a tiragem inicial de uma editora independente, que acolhe a maioria de escreviventes deste país, é de 50 a 100 livros - e não é fácil vendê-los já que a divulgação é inteiramente por sua conta e a distribuição é limitadíssima.
Na publicação digital, a maior plataforma é a Amazon. Existem outras alternativas, mas com distribuição muito mais limitada, que não conseguem concorrer com a Amazon, gigante que usa estratégias desonestas para engolir todo o mercado. Não é justo termos só uma opção viável para publicação de e-books. Eu mesma hesitei muito em deixar meus livros disponíveis por lá porque não queria enriquecer Jeff Bezos em troca de - literalmente - centavos. Os e-books podem ser vendidos a unidade e você pode receber até 70% do valor de cada venda mas a verdade é que a grande maioria de leitores e usuários de e-book parece ser de assinantes do kindle unlimited, serviço de assinatura que permite que os livros disponibilizados no catálogos do K.U. sejam lidos gratuitamente. Recebemos pagamentos por página lida. Centavos. Faça as contas: não é muito que cai na nossa conta.
OPERÁRIOS DA ARTE
Parece que não faz sentido reclamar, quando eu sabia tudo isso ao entrar nesse mercado e nem tenho a escrita como fonte principal de renda. Minha reclamação também pode ser desautorizada pelo fato de eu me submeter a todas essas intempéries por amor - algo inevitável e incontrolável.
As pessoas que não vivem de arte se esquecem que artistas também são operários. Afinal, em um mundo onde arte também é mercadoria, a produção também não sai de graça, e o trabalho que custa dinheiro para ser realizado precisa ser remunerado. Quando se pensa, especificamente na produção de um livro, os serviços editoriais - estes por quais paguei - (quase) sempre são considerados dignos de remuneração. Afinal, é possível calcular quantas horas um texto gastou para ser revisado, quantas palavras o revisor precisou ler, quantos caracteres foram diagramados. A ilustração segue, na minha opinião, um caminho parecido com o da escrita por ser um trabalho mais criativo, mas talvez por ser um trabalho que é mais inalcançável por muitos de nós, meros mortais, a remuneração é menos negociável. Mas como cobrar pela ideia para um livro?
Uma ideia nunca nasce pronta. Ela é fecundada na junção entre o tempo de estudo e prática dos formatos e técnicas de escrita com o acaso inspirado ao pé do ouvido do escritor, órgão sensorial aguçado, capaz de ouvir sussurros vindos diretamente do mundo das ideias. Quando escrita, uma ideia se reinventa inúmeras vezes pelas mãos concretas e mentais de um escritor trabalhando em tempo real sobre um texto. Por ser pouco palpável, a ideia é tida no senso comum não como produtora a ser paga ou produto a ser vendido, mas como algo completamente subjetivo. Não é exclusividade da literatura, também em outros formatos artísticos, a ideia é tratada como um sopro místico sem dono e pertencente a todos, algo que não deixa de ser verdade, mas que - por vivermos em um sistema movido pelo papel-moeda, não podemos aceitar como total verdade. Toda subjetividade se compõe de inúmeras concretudes diárias, sedimentadas em areia e cascalho que constroem o edifício da ideia.
A escrita de uma ideia tem uma parte mental que não podemos tocar ou ver, mas há algo que a sociedade prefere ignorar apesar de ser possível de se ver. Escrever também é um trabalho físico: o intelecto depende do cérebro, um órgão do corpo; é o corpo (olhos encarando a página em branco ou a tela, quadril assentado em uma cadeira, coluna envergada, mãos escrevendo, dedos digitando, boca ditando) que traduz o que está na mente em palavras.
Então, podemos concluir que, embora a arte tenha um pé no subjetivo, sua cauda de sereia revela que ela é real. E mais necessária do que se pensa.
A FUNÇÃO DA ARTE
A arte é uma expressão humana para transcender a finitude de sua existência, ela vai além da natureza da sobrevivência e é guardiã da cultura da vivência. Fazer e consumir arte é, verdadeiramente, existir. E não deveria isto ser o mais valioso: De fato viver, e não só existir buscando a reprodução da vida?
Vivemos em um mundo capitalista. E eu ainda não fui remunerada pelos meus delírios convertidos em papel. Mas a arte é cara e não quero que se torne inacessível. Enlouqueço diante do dilema, limito minha criatividade em busca de compensaçã. É exatamente isso que quem vive às custas da nossa mera sobrevivência quer: que a gente desista dos nossos sonhos para sonhar apenas com a concretude material artificial que compraremos deles. Querem que a gente apenas sobreviva sem o gosto de existir que a arte pode proporcionar. Tornar a arte inacessível é um projeto dos poderosos para não nos dar ferramentas para questionar.
Bem, a arte é inacessível, mas fazer arte também é. Quem vai comprar minha arte? Quem vai me deixar lucrar para viver, ao invés de apenas sobreviver? Você, que também está quebrado, falido e lascado? Bem, o dilema persiste, mas isso, é claro, é culpa do sistema em que vivemos.
Quando me propus a começar a escrever de forma mais comprometida à publicação, fui aconselhada a criar um manifesto da minha própria arte e depois a me expor como artista em um blog. Um dos primeiros posts foi sobre a arte em um mundo não-capitalista - o meu sonho de mundo. Sim, eu tenho um sonho, entre tantos que não me conseguiram tirar, com um mundo onde a arte não seja mercadoria.
E aqui compartilho trechos do post original que condizem também com a minha percepção atual o sobre a função da arte.
Eu acredito muito na máxima de que "A arte deve confortar o perturbado e perturbar o confortável" e eu me pauto muito nessa frase do Banksy pra entender por que e pra quem eu escrevo. É claro que existem outras definições sobre o que é arte e porque ela deve existir. (…) estou o tempo todo consciente de que aquilo que produzo na escrita não é para mim, exclusivamente.
(…)
Eu realmente quero que minhas palavras sejam um abraço morno num dia frio ou o refresco de uma sombra sob o sol escaldante.
Oferecer conscientemente a arte como alívio é me doar um pouco ao mundo, compreendendo como ele tem sido para as pessoas.
A vida não é fácil, nem quando ela está mais próxima do seu natural. Mas todas as dificuldades se agravam dentro do sistema social, político e econômico em que vivemos. O capitalismo nos põe contra nossa natureza: temos que nos esgotar para sobreviver, quando também é humano parar para contemplar a vida e nos poupar. Somos também ensinados a competir quando na verdade nossa espécie progrediu graças à cooperação. Nos fizeram crer na necessidade de nos encaixarmos em padrões físicos, emocionais, mentais, comportamentais para fazer parte desse grupo que deveria nos acolher mas na verdade ele nos faz crer que nossas diferenças são indesejáveis. Idealmente, deveríamos ser como somos e nos juntarmos apesar das características distintas, porque é a nossa pluralidade que nos fortalece. A maior parte dos nossos sofrimentos vem desse sistema.
Não que nas sociedades mais primitivas não houvesse dor, conflito ou resistências pelo caminho, mas se a gente buscar a origem das nossas angústias existenciais físicas e mentais, vamos descobrir como quase tudo vem da nossa organização capitalista. Que mesmo antes de ser consolidada como hoje é, já vinha construindo sua cadeia de opressões que hoje culminam na nossa sociedade misógina, racista, xenofóbica, elitista, LGBTfóbica, colonialista e preconceituosa e danosa de tantas outras formas cruéis e injustas.
Não vejo como a arte verdadeira pode servir a esse sistema. Pelo contrário, o papel dela fica cada vez mais claro diante desse cenário como parte dele, sim, mas como também um contraponto (…) é preciso usar todas as formas possíveis para contestar as coisas como estão. (…) tenho como utopia que me guia uma outra sociedade, muito distinta da atual e, luto muito por ela. (…)
Nessa sociedade com que sonho, há conforto para todos. Projetamos que a expressão artística seria entendida de outra maneira, como uma tradução genuína de si que não passaria pela necessidade e aprovação de um público consumidor, porque nessa sociedade ideal, sonhamos com a possibilidade de não ter nada tornado mercadoria, nem mesmo a arte, que acaba sendo vendida para a sobrevivência do artista. Poderíamos até discutir sobre como [atualmente] segregamos até mesmo a função da arte para apenas algumas pessoas, [desfrutarem de sua criação e fruição] quando na verdade, qualquer um tendo o entendimento do que é arte poderia também produzi-la. Se não houver perturbação (ou não tanto como hoje temos, já que a vida implica em movimento e movimento em conflito, embora nem todo conflito precise ser relativo à sobrevivência individual e pode passar apenas pela cooperação para uma vida melhor), não haverão pessoas precisando do conforto que a música, a dança, a pintura, a escultura, a literatura ou qualquer outra forma de expressão nos oferece, seja na sua própria produção ou ao ser apreciada.
Perdendo esse papel e se livrando da binariedade de [servir para] confortar e perturbar, o que seria da arte? Ela só tem relevância dentro de um mundo perturbado? Ou estamos perdendo todo um universo de expressões que nos é negado porque a arte hoje é também meio de sobrevivência daqueles que não conseguem evitar serem artistas ou daqueles que precisam dela para sub-existência?
Sou do time de pessoas que crê que estamos deixando todo um universo de verdadeiras expressões da alma e de proposições para novos mundos justamente porque a arte em sua forma final não foi vista. Ela só existirá em toda sua grandiosidade quando nosso mundo nos permitir conforto [de forma mais simples].
Até lá, que ela seja grande dentro do nosso sistema, como o alívio da visão de terra confortavelmente firme e acolhedora, a ser alcançada enquanto navegamos no mar perturbado em que fomos deixados à deriva.
Como viver esse sonho de mundo se o mundo continuar o mesmo?
É preciso sonhar junto com outras pessoas para criar uma nova realidade. E isso eu compartilho com vocês na parte 2 da série “Papel-Moeda”, que você lê na próxima edição dessa newsletter!
Em outubro comecei a oferecer mentorias de escrita individuais para quem quer organizar os próprios textos curtos para publicação. Quer saber mais? Clique aqui, aproveite e se inscreva! Escrevi para o Valkírias sobre como a animação Nimona usa a metáfora da monstruosidade x humanidade para representar as vivências LGBT+. Leia aqui!
Bem, nos vemos no mês que vem com a segunda parte dessa newsletter!