Existem muitos e muitos filmes com personagens escritores. Talvez seja até um clichê. Mas poucas dessas obras - pelo menos, entre as que vi - de fato abordam de forma direta e elaborada a temática da escrita. Nesta edição especial do ANNAVERSO, trago meus três filmes favoritos com personagens que escrevem e têm uma relação com a escrita bem explorada ao longo da trama. E também deixo um filme bônus.
Antes de compartilhar esta pequena lista, gostaria de recomendar a leitura da primeira parte desta série de posts. Na edição de julho, indiquei séries de TV e streaming sobre a escrita - apontando alguns pontos interessantes para se prestar atenção enquanto escritora-espectadora.
A sociedade literária e a torta de casca de batata
Juliet Ashton (Lily James) é uma escritora na Londres de 1946 que decide visitar Guernsey, uma das Ilhas do Canal invadidas pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, depois que ela recebe uma carta de um fazendeiro contando sobre como um clube do livro local foi fundado durante a guerra. Lá ela constrói profundos relacionamentos com os moradores da ilha e decide escrever um livro sobre as experiências deles na guerra. (Adoro Cinema)
Inspirado no livro homônimo de Mary Ann Shaffer, o filme disponível na Netflix não é tão conhecido, mas um dos poucos que demonstra tão amplamente a importância de diversos formatos narrativos. O fio condutor do filme são as narrativas particulares: um livro sobre algo pessoal pode ser uma homenagem à cada vida que protagoniza sua existência na terra, e também é um complemento à história com letras maiúscula, aquela que se conta nas escolas e documenta os períodos que se vive em coletividade. Esta temática vai se amarrando a outras narrativas na trama: por um lado, temos a própria escritora e jornalista em busca de inspiração, temos a troca de cartas que trazem uma visão particular de muitos fatos históricos, temos as discussões sobre a literatura e o poder das narrativas literárias para tornar suportável a vida dos integrantes da Sociedade Literária e da Torta de Casca de Batata em meio à segunda guerra. O livro que a protagonista escreve - em uma jornada identificável e bastante realista de inspiração e trabalho - é também um legado histórico em forma de narrativa e toda a trama é costurada com fios de delicadeza, leveza, humor em meio à dureza das sequelas de guerra e da própria guerra, que ainda perdura em cada habitante da ilha.
Kim Ji-Young, Born 1982
Kim Ji-young (Jung Yu-mi), uma mulher comum em seus 30 anos, de repente mostra sinais de ser habitada por outros, como sua falecida mãe e irmã mais velha, e as histórias das pessoas conectadas a ela. (IMDB)
Assim como é difícil - mas não impossível - encontrar o longa inspirado em livro homônimo para assistir, foi difícil também encontrar uma sinopse que realmente fale sobre o filme: Ji-Young é uma mulher casada que abdicou de sua carreira - ao menos temporariamente - desde o nascimento da filha. Ao longo da trama baseada em um livro de mesmo nome, nos vemos diante de um machismo estrutural que oprime a mulher na sociedade coreana, ainda mais agravado com a maternidade. O realismo é pincelado com tons fantásticos que produções do país dominam, e a subtrama sobre a escrita está sempre presente nas frestas de cada acontecimento. A identidade de Ji-Young, como descobrimos ao final, é também a de sua persona escritora. Sem a escrita, quem ela se torna? O que resta? Como ela vai contar as narrativas contidas dentro dela? Como ela vai se colocar no mundo de forma única? Para quem assiste, a escrita pode ser entendida como uma metáfora da personalidade, que precisa ser reconquistada a partir do momento em que a escritora abdica de sua individualidade para cumprir apenas o papel de mãe e esposa.
(Se você está se perguntando porque não indico os livros que inspiraram os filmes, é porque não li. E eu definitivamente não sou o tipo de pessoa que acha que a literatura é a forma superior de arte e eu gosto muito do meu tempo precioso, se vi o filme é raro que eu leia o livro. E no caso do segundo, o Gong Yoo interpreta o marido da Ji-Young. Eu não poderia esperar pra terminar um livro quando o ator do filme que me esperava nas telas era Gong Yoo.)
tick, tick… BOOM!
Enquanto espera por sua grande chance, Jon (Andrew Garfield) escreve uma peça chamada Superbia, que ele espera que seja um grande musical. Ao se aproximar do seu aniversário, ele se sente tomado pela ansiedade, perguntando-se se seu sonho vale a pena. (IMDB)
tick, tick… BOOM! não poderia ser ruim. Tem as mãos de Lin-Manuel Miranda, que é sim um gênio dos musicais, é inspirado em uma história real, bela e trágica e faz referências à musicais aclamados. E é, também, protagonizado por um dos maiores - se não o maior - ator da geração: Andrew Garfield. A obra é perfeita exatamente por ter esta combinação de elementos construindo um universo emocional bastante complexo que tem como base um roteiro sensível, visceral e que não foge de nenhum elemento polêmico. Talvez vocês estranhem a presença deste musical na lista, já que o filme é uma biografia de Jonathan Larson, autor de musicais. Mas aí é que está: roteiros teatrais também passam pelo processo da escrita. Este é um dos melhores filmes que já vi na vida e me toca profundamente por debater a questão da arte como necessidade para quem a cria, obsessão para quem quer ou precisa viver dela, seu poder revolucionário para quem a consome e seu poder monetizante para quem a explora. Os conflitos que o protagonista vive certamente são aqueles que toda pessoa tentando viver de arte engajada já enfrentou e acho que este é o filme que mais contempla como o processo criativo funciona para grande parte de nós, autores - ainda que a escrita de um musical demande domínio de outras linguagens que não a apenas a escrita.
Bônus: Adoráveis Mulheres
As irmãs Jo (Saoirse Ronan), Beth (Eliza Scanlen), Meg (Emma Watson) e Amy (Florence Pugh) amadurecem na virada da adolescência para a vida adulta enquanto os Estados Unidos atravessam a Guerra Civil. Com personalidades completamente diferentes, elas enfrentam os desafios de crescer unidas pelo amor que nutrem umas pelas outras. (AdoroCinema)
Indico como bônus esta obra prima roteirizada e dirigida por Greta Gerwig e baseada em mais um livro que não li: Mulherzinhas (ou Adoráveis Mulheres), de Louisa May Alcott. Apesar de a escrita não ser um tema central da trama, Jo March, a protagonista costura as relações de suas irmãs com a sociedade e entre a família através da literatura. Sua jornada pode gerar identificação para mulheres que escrevem, já que ela enfrenta percalços ainda típicos da vivência feminina no mundo masculino da escrita.
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Em setembro escrevi sobre Meu diário para a Liberdade, a sociedade do cansaço em que vivemos e como encontrar libertação em meio à exaustão para o Valkírias. O texto faz parte do especial do Setembro Amarelo do portal, e pode ser lido aqui. Também teve texto meu no sétimo post do Escrevendo pelas beiradas, blog do Coletivo Margem.
Lua em Escorpião: versos sobre desejos profundos está disponível também em formato e-book, via Amazon. Quem ainda não leu pode adquirir por um preço mais acessível do que a versão física: R$14,90. Quem faz questão da versão física do meu livro de poesias precisa correr: estou com os TRÊS ÚLTIMOS EXEMPLARES que podem ser enviados autografados. Basta me mandar uma mensagem aqui ou no insta.
Alguns escritos são vulcões adormecidos, prontos para entrarem em erupção a qualquer momento. É interessante como isso faz parte da natureza: lava fervente, saindo das profundezas para chegar à superfície. Assim vejo a poesia de Anna Carolina Ribeiro: em chamas, pronta para atingir o seu público e colocá-lo para pensar sobre o que são as relações de amor e o que significa habitar-se. Na astrologia, a Lua é a encarregada pelo alimento dos nossos corações: os sentimentos. Musa de todas as pessoas que se atrevem a versar, nosso satélite é capaz de agitar marés para expressar o que genuinamente nos move. Já o signo de Escorpião é tido como o responsável pela morte e pelo renascimento. É ele que vai do 8 ao 80, que sente com intensidade, fazendo brotar potências e sufocando o que não deve existir até que tudo se extinga — tudo e nada coabitando no caos. Lua em Escorpião nasce sob essas forças. É com a verdadeira audácia escorpiana — aquela que não tem medo de encarar sua essência — que a autora escreve. Cada verso nos interrogando em cheio: até que ponto os seus desejos vêm da alma? A poeta nos deixa, portanto, o convite para o aprofundamento escorpiano. É se entregando — à escrita, à rotina, ao amor e ao próprio corpo — que Anna Carolina Ribeiro nos desarma e nos presenteia com o melhor do que há na poesia contemporânea. (Fernanda Rodrigues)
Em outubro vou abrir vagas para mentorias individuais para quem tem textos soltos que gostaria de organizar em um livro. Mais informações e inscrições aqui.
Até o mês que vem!